Os argumentos são essencialmente dois: o nosso curso custa dinheiro aos contribuintes e a nossa formação também.
Ora, vamos lá pensar. Será que o curso de medicina custa mais dinheiro ao Estado do que os outros?
Anda por aí a circular uma imagem sobre o custo dos cursos, que conclui que as engenharias e até a medicina dentária são mais caras para o Estado do que os cursos de medicina. Eu não sei se isto é verdade ou não, mas tendo passado por ele sinceramente não sei bem onde é que o Estado gasta dinheiro. Nos anos teóricos os nossos professores não recebem nada de especial e na sua grande maioria até continuam a exercer em paralelo (ou seja, não me recordo de ninguém que fosse 'só' professor). Também funcionamos muito por 'monitores', ou seja, alunos mais velhos que são convidados a dar aulas (e que, do que me recordo, não ganham dinheiro por isso). Nos anos práticos vamos para os hospitais, os nossos tutores também não são pagos e o nosso treino é feito (lamento informar) nos doentes. As aulas são-nos dadas por outros médicos que o fazem pelo gosto de ensinar, e pronto. Todos pagamos propinas (seis anos delas, na verdade), e juro que não me ocorre onde é que o curso de medicina possa ser mais caro do que outro curso teórico qualquer (porque sim, temos um curso extremamente teórico).
Eu não sei se a minha formação custou mais ao Estado do que a formação do meu irmão, que é engenheiro aeroespacial. Mas sei uma coisa: eu estou a dar sete anos de trabalho ao Estado durante a minha especialização, e o meu irmão vai sair do curso directo para uma empresa privada. E se acham que a minha especialização custa dinheiro ao Estado, atentem:
* No meu serviço há mais internos do que especialistas. Cada interno recebe exactamente o mesmo número de primeiras consultas por semana do que um especialista, faz as mesmas horas de urgência e trabalha mais de 40h.
* Os nossos tutores não recebem dinheiro para nos formarem (à excepção de uns modelos específicos do centro de saúde) e muitas vezes não perdem tempo de consulta para isso. Nós também formamos outros internos que assistem às nossas consultas (bem como alunos da faculdade), e não recebemos dinheiro por isso. É uma cena do Juramento de Hipócrates, ensinar a arte aos colegas e tal.
* Os congressos e cursos são pagos do nosso bolso e muitas vezes custam centenas de euros. Já paguei 600 euros para ir a congressos, já paguei 300, o valor normal para um congresso internacional anda por aí. Há quem consiga ter estes congressos pagos pelas farmacêuticas, mas é cada vez mais raro (e na minha especialidade simplesmente não acontece).
Ou seja, eu produzo. Também recebo por isso. O meu ordenado varia com os meses, mas diria que em média anda pelos 1900€ de salário bruto e 1400€ de salário líquido. Ou seja, todos os meses desconto 500€ de impostos. Nada contra, e já escrevi aqui várias vezes que até nem me importava de pagar mais impostos se isso fosse garantia de termos sistemas de educação e de saúde bons e acessíveis para todos. Também não me queixo do quanto recebo: quando comecei a trabalhar ganhava 1100€, agora ganho um bocadinho mais, não conheço outra realidade. Não preciso de contar dinheiro para chegar ao fim do mês, por isso já estou em vantagem em relação a muita gente.
Agora, também não sinto que deva mais ao Estado do que um advogado ou um professor. Acho muito bom viver num país que me permitiu estudar e ter um mestrado sem estar enterrada em dívidas, mas não sinto que tive mais sorte do que um estudante de engenharia ou de direito. E na verdade vinculada ao Estado já eu estou, não há outra forma de fazer o internato.
Obrigar a malta à vinculação é, sinceramente, tontinho. Há uns anos havia umas vagas de especialidade protocoladas que basicamente 'obrigavam' as pessoas a ficarem em hospitais mais pequenos. Resumidamente funcionava assim: o Hospital de (por exemplo) Évora abria uma vaga porque precisava de uma determinada especialidade, mas não tinha capacidades para formar aquele interno. Vai daí, tinha um acordo com um hospital maior (por exemplo, em Lisboa), que formava o interno. Durante os anos do internato aquele interno ganhava mais dinheiro (porque se assumia que tinha de se deslocar para outra área), e no fim era obrigado a vincular-se ao hospital de origem ou a devolver o dinheiro. E adivinhem só qual era a opção da maioria das pessoas, que saíam da especialidade com mais de trinta anos, depois de viverem uns anos num sítio grande e terem lá parceiros, filhos, casas e por aí fora? Pois. Não quer dizer que não haja malta que volte, atenção. Mas não são claramente a maioria.
Não sei mesmo qual será a forma mais rápida e eficaz de cativar colegas para o SNS, porque acho que já estamos longe da fase em que pagar mais ao pessoal resultava. Mas não é certamente obrigando-os, até porque num Estado de direito isto não faz qualquer sentido.