É assustador ler as notícias sobre o SNS ultimamente. Para nós médicos não é nada de novo, e há anos que andamos a queixar-nos da degradação daquele que foi em tempos um dos melhores sistemas de saúde públicos do mundo. Mas ultimamente andamos ainda mais frustrados e assustados, talvez porque os problemas chegaram a áreas como a obstetrícia e a pediatria, que foram nos últimos anos as áreas mais investidas e mais desenvolvidas da medicina no nosso país (não é à toa que temos uma das menores taxas de mortalidade infantil do mundo, à frente de países como o Reino Unido, a Holanda ou os Estados Unidos).
Ler as notícias sobre o encerramento das urgências de obstetrícia e de pediatria deprime-me. Ler sobre colegas que cometem erros grosseiros por razões que aparentemente ninguém compreende muito bem deprime-me. Saber de coisas que não passam para os jornais deprime-me. Ler comentários da malta deprime-me. Perceber que há uma enorme desinformação sobre aquilo que se passa deprime-me.
'Andamos aqui a pagar-lhes o curso e depois vão ganhar rios de dinheiro para os privados.' - dizem.
Bem, em nossa defesa nós pagamos propinas, tal como o resto do pessoal. Além disso, presumo que a esmagadora maioria das pessoas tire o curso (subsidiado também pelo Estado) e vá trabalhar para empresas privadas, por isso também seria válido para toda a gente que não fosse funcionário público. Dizem que medicina é um dos cursos mais caros, mas para ser muito sincera não percebo muito bem porquê. Os nossos tutores não são pagos, temos aulas como as outras pessoas, assim na loucura na minha faculdade havia dissecções mas com pessoas que tinham doado o corpo, os hospitais já lá estão a funcionar sem nós, não estou a ver onde pode estar esse investimento tão grande.
Em relação ao facto de irmos 'para o privado', vou falar do assunto abaixo.
'Era obrigarem as pessoas a saírem das grandes cidades e a entrarem no público no interior.'
Nos últimos anos a grande maioria das vagas da grande maioria das especialidades é em hospitais pequenos, precisamente na tentativa de atrair mais médicos para locais mais carenciados. O problema é que nesta fase da vida (o fim da especialidade) as pessoas já têm mais de trinta anos, muitas vezes são casadas, os companheiros têm empregos fixos, têm casa, têm filhos. Conheço alguns colegas que arriscaram e mudaram toda a sua família para outro local, mas a grande maioria opta por desvincular-se do público e ir trabalhar para o privado. Não por dinheiro, mas porque quer ficar no sítio onde já vive, às vezes onde viveu durante a vida toda. Anos após ano, o concurso começa e simplesmente não há vagas nas grandes cidades, que estão a ficar também cada vez mais carenciadas (os colegas reformam-se, ou saem, os internos vão segurando as pontas mas acabam o internato e vão à vida deles).
'Mas os professores saem de casa, às vezes sem a família!'
Saem, e eu acho um escândalo. Mas nós não precisamos. Se não existissem privados, obviamente que tínhamos de fazer o mesmo (pessoalmente eu até acho que não deviam existir, mas isso é a minha educação comunista a falar), mas existem, há alternativas não controladas pelo Estado e por isso ninguém nos obriga a aceitar um contrato no público longe de casa.
'Só querem dinheiro.'
Sabem quanto oferecem aos meus colegas da pediatria para irem fazer bancos para o Garcia da Orta? Muito dinheiro mesmo. E as urgências continuam a estar fechadas. Acham que é porque não queremos dinheiro? Asseguro que queremos. Não queremos é más condições de trabalho e estar sozinhos numa urgência com a responsabilidade de assegurar tudo o que vier (emergências, traumas, coisas complicadas). Não há dinheiro que pague a insegurança de estarmos sozinhos com a vida de um miúdo nas mãos, e é por isso que todos trabalhamos em equipas nos serviços de urgência. Além disso, também sabemos que aceitar este tipo de condições, por mais apetitosas que pareçam do ponto de vista financeiro, não resolve o problema de base, e ninguém quer compactuar com isso.
Nos últimos anos saíram imensas pessoas da pediatria do Garcia (os jornais dizem que foram treze) e este ano só abriram quatro vagas para assegurar o trabalho de treze pessoas. Essas vagas ficaram vazias, porque ninguém quer correr o risco de entrar sozinho. E a culpa não é nossa. Pensem no seguinte:
Passam a vida inteira a estudar. Tiram médias altíssimas no secundário. Passam mais seis anos num curso super frustrante, que tem pouco de médico e muito de teórico, com maior ou menor competitividade com os colegas consoante a faculdade, com professores pouco disponíveis e estágios muitas vezes sofríveis. Entram numa especialidade de quatro, cinco ou seis anos onde é esperado que saibam automaticamente o que é para fazer, que estudem, que façam mil artigos e apresentações científicas em congressos, que vejam doentes em quinze ou vinte minutos e que façam dois bancos por semana, às vezes de 24h, muitas vezes sem direito a folgas compensatórias (volto a dizer que o Pedro em dias de banco trabalhava das 8h às 15h, entrava novamente às 20h, saía às 8h e ia operar até às 15h, e isto estava contemplado no horário de trabalho dele e não ganhava mais por isso, e na esmagadora maioria das vezes não conseguia descansar mais do que duas horas. Sentem-se seguros por saber que um médico que nas últimas 24h trabalhou dezanove e dormiu duas vai operar um dos vossos olhos?). Quando acabam a especialidade querem mesmo ir enfiar-se sozinhos num hospital e fazer dois bancos de 24h por semana a ganhar mais mil euros? Não há dinheiro que pague trabalhar 24h seguidas em más condições, acreditem em mim. A prova disso é o facto das urgências continuarem a fechar.
(E os zunzuns da obstetrícia terminaram, mas as urgências continuam a fechar. Ainda na semana passada um serviços de urgência dos maiores hospitais da zona de Lisboa fechou durante o dia porque não tinha obstetras suficientes para assegurarem o bloco de partos. As pessoas foram encaminhadas para outros hospitais, que já de si estão a rebentar pelas costuras, com prejuízo das grávidas e dos seus bebés.)
A par disto, é inegável que os privados e os público-privados oferecem contratos muito mais apetecíveis: muitas vezes com 30h, sem urgências, com horários flexíveis e com salários iguais aos oferecidos no público. Já falei aqui do caso do Pedro, que ganha sensivelmente o mesmo que ganharia se tivesse ido a concurso para ficar no público (até um bocadinho menos) mas tem uma vida infinitamente melhor. Não é uma questão de ambição ou de falta de vontade de trabalhar, simplesmente queremos boas condições de trabalho. Ou razoáveis, pronto. Não me choca nada que os colegas da pediatria façam exactamente a mesma coisa.
O que nos traz a questão: então o que fazer para resolver a questão gritante do Garcia? Talvez levar para lá uma equipa inteira, ou seja, contratar dez pessoas ao mesmo tempo (ou mais)? E dar-lhes benefícios específicos por estarem num hospital mesmo carenciado? Não sei. Não sei mesmo. E isso deprime-me.
Quase que tenho inveja das pessoas raivosas que comentam que o problema é sermos todos uns cabrões, mandriões e chulos. Ao menos, essas sabem todas as respostas. Eu não sei nenhuma, e não conheço médicos que saibam. Só nos resta mesmo olhar à nossa volta e ficar deprimidos.