27 de junho de 2019

Pregnancy Diary #16

Quando eu estava grávida do Matias não tínhamos qualquer espécie de dúvida: o miúdo ia nascer num hospital público e ponto final. Falei com a minha amiga Joana (interna de obstetrícia, não confundir com a minha amiga Joana interna de pediatria), que estava a fazer o internato no Hospital Garcia de Orta, e o Matias nasceu lá.

A Joana estava a trabalhar há trinta horas seguidas quando o Matias nasceu. Fez uma urgência de 24h (frequente em especialidades como a obstetrícia e a pediatria) e ficou no hospital à espera para fazer o meu parto. Ela própria estava grávida de seis semanas, mas eu não sabia.

No dia em que o Matias nasceu, a urgência de obstetrícia do Hospital de Setúbal estava fechada por falta de médicos. Na sala de espera havia grávidas que viviam a 150km de distância do Hospital Garcia de Orta, mas que tiveram de ir para lá porque não tinham outro sítio para onde ir.



Para mim, o meu parto foi lindo. Chorei de felicidade mal me puseram o Matias em cima e amei-o desde o primeiro segundo. Recuperei bem, fiquei impecável, gostei do hospital (só na parte da amamentação é que foram blés).

Para a Joana, o meu parto foi difícil. Foi cansativo, foi ansiogénico. O meu parto não foi outro parto qualquer, foi o meu - a amiga da faculdade, cujo filho ela vê frequentemente.

Decidi logo que nunca mais ia fazer uma amiga minha passar pelo mesmo. Por outro lado, é inegável que ter uma amiga a fazer-me o parto foi espectacular, e por isso percebi que precisava de uma obstetra com um estilo. Não queria aquele obstetra que toda a gente conhece, aquela obstetra que é famosa, aquele obstetra que faz induções e cesarianas porque dá mais jeito. Queria alguém com um estilo. O meu estilo.

Já há alguns meses que trabalho na Amamentos, uma clínica muito fixe e toda orientada para o bebé e a criança. Na festa de Natal estávamos todos a apresentar-nos, e eis que a Mariana diz que é obstetra. E doula (é a única doula que é obstetra no país inteiro). E parte da direcção da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto. E tinha entrado no concurso no hospital onde eu trabalho.

Olhei para o Pedro tão depressa que nem sei como não magoei o pescoço, e ele respondeu logo 'nem pensar que vamos ter uma doula Xi, ganha juízo'. E eu percebi. Sinceramente, nunca tinha sido algo importante para mim. Vejo a gravidez e o parto de uma forma muito médica, já vi dezenas de partos, não quero músicas nem velas, quero episiotomias e tudo a que tenho direito do ponto de vista médico. Era a única grávida do meu curso de preparação para o parto que não tinha plano de parto, precisamente porque só tinha dois pedidos: eu não queria ser induzida (e não fui) e queria ser eu a tirar o Matias de dentro de mim (e só não tirei porque tinha o braço partido). Não queria bolas de pilates, nem deambular, nem poder comer e beber, nem queria mandar bitaites sobre vitamina K ou o tempo de clampagem do cordão umbilical, porque isso são decisões dos especialistas do assunto. Se um obstetra não vem dizer-me que a Ritalina é melhor do que o Concerta, porque é que eu ia dizer-lhe a ele o que é melhor?

Três meses depois, estava grávida e indecisa. Marquei uma consulta com a Mariana para nos conhecermos melhor, e adorei-a. E bastou uma consulta para o Pedro gostar tanto da Mariana como eu.

Continuo a ser a mesma pessoa. Não quero músicas nem velas e já disse à Mariana que para mim é episiotomia love love love. Não vou nem quero tomar decisões médicas (isso é com ela e eu confio nela) e até já lhe disse que não sou de todo mártir da amamentação. Afinal, já diz a música: eu nasci assim, eu cresci assim, e sou mesmo assim, vou ser sempre assim :D

Problema: a Mariana efectivamente entrou no concurso no hospital onde eu trabalho, mas rescindiu o contrato - provavelmente pelas mesmas razões que fazem anualmente centenas de médicos saltarem para os hospitais privados. O meu hospital vai fechar rotativamente as urgências este Verão porque faltam técnicos para assegurar a urgência, mas também não lhes oferece condições para lá trabalharem. E eu sei que isto faz muita confusão às pessoas que no geral acham que devíamos todos trabalhar por amor ao próximo, mas repare-se no seguinte:

O Pedro acabou agora o internato. Se fosse a concurso, podia (ou não, porque não há vagas suficientes) ficar num hospital público a trabalhar 40 horas e a ganhar x, com urgências semanais de 12h (incluindo nocturnas), sem direito a banco de horas ou folgas compensatórias (no internato muitas vezes ele trabalhava de dia, ia fazer urgência à noite e no dia seguinte às 8h já estava a operar até às 14h). E isso faz parte do nosso horário, por isso quem pensa que ganhamos mais por isso pode já mudar de ideias. Num banco nocturno de 12h eu recebo uns vinte euros a mais, por estar a fazer o que se designam de 'horas incómodas'. Vinte. Euros.

(Não interpretem isto como chorice. Todos nós sabíamos para o que íamos e sabemos que faz parte.)

O Pedro acabou agora o internato e ofereceram-lhe um contrato numa parceria público-privada. Trabalha 30h por semana. Ganha exactamente os mesmos x que ganharia no público. Mas não faz urgências, não tem chatices, tem um horário flexível e está feliz da vida. No tempo que lhe resta sabem o que ele faz? Não vai para o privado encher os bolsos, como toda a gente imagina que fazem os médicos. Vai buscar o Matias mais cedo, vê vídeos de xadrez, montou sozinho uma sanita cá em casa, dorme sestas, descansa, não faz nada. Vive a vida.

A urgência de Oftalmologia esteve várias vezes em risco de fechar, e não garanto que não tenha já fechado em alguns dias por falta de técnicos. Na pedopsiquiatria foi necessário reorganizar a urgência para que não tivesse de fechar por falta de técnicos. E nós assistimos angustiados à morte lenta de algo em que sempre acreditámos.

Quando falo disto, toda a gente reforça que no SNS há óptimos profissionais. Eu sei que há. Eu conheço-os. Sou eu, é o meu marido, são os meus amigos, são todos os meus colegas. Somos óptimos. Mas estamos cansados e de rastos, com dificuldades em acreditar em algo com o qual já não nos identificamos, sobrecarregados e deprimidos. Somos os pais que não querem ver os filhos a crescer nas fotografias, como muitos médicos das gerações mais antigas. Somos os profissionais que não querem acumular funções no público e no privado, por isso vamos para o privado se pudermos. Não queremos mais dinheiro, queremos mais tempo. Queremos viver.

A Mariana agora só trabalha 12h por semana no meu hospital, e no resto do tempo está num hospital privado. E nós estamos a reorganizar-nos. Isto nunca fez parte do nosso projecto, mas já nenhum de nós confia particularmente no SNS.

Só confiamos nos nossos colegas. Quando eles estão no público, é para lá que vamos. E se eles estão no privado nós vamos para o privado também.