26 de outubro de 2016

O que é isto da vocação?

Na sequência da situação da mocinha que não entrou no curso de Medicina e escreveu uma carta ao Presidente da República, leio muitos comentários sobre 'a vocação' para ser médico. E sorrio de uma forma condescendente.

Quando eu tinha dezoito anos não podia estar menos preocupada com isto da vocação. Tinha boas notas (tinha óptimas notas, na verdade) e sabia o que queria da vida: viajar. Até queria ir para psicologia, mas o que queria mesmo mesmo mesmo era poder ter uma estabilidade financeira que me permitisse viajar quando eu quisesse, para onde eu quisesse. Na altura, achei que mais facilmente atingiria isso em medicina (o que é verdade, embora tivesse uma perspectiva claramente demasiado optimista em relação ao dinheiro que iria ganhar).



Não queria saber de velhinhos, de criancinhas, de tratar hipertensões ou de salvar vidas. Eu queria era viajar. Conhecer o mundo. Perder-me só para me encontrar a seguir. Tinha o egoísmo (e, digamos, também a inocência) de uma pessoa com dezoito anos. Era uma adolescente irritante, sim, mas não se pode dizer que não soubesse já bastante bem o que queria da vida.

Na altura tive vinte no exame nacional de matemática e quinze nos outros. Abracei a inevitabilidade das coisas: afinal, eu tinha jeito era para a matemática, e claramente pertencia a uma engenharia. Por via das dúvidas, candidatei-me a duas faculdades de medicina: uma no Porto (não me recordo qual delas) e a Faculdade de Ciências Médicas em Lisboa. Depois candidatei-me a engenharia química, bioquímica, engenharia biomédica e ciências farmacêuticas. Entrei na FCML com 18.85 de média.

Tive a média do último colocado nesse ano. Não fui a última a entrar (éramos muitos com 18.85, e o vinte no exame colocava-me em vantagem em relação às outras pessoas com a mesma nota de entrada), mas fui das últimas. E durante meses pensei no que estaria ali a fazer. Eu, que tinha roubado uma vaga a alguém que tinha 'vocação', o que quer que isso fosse. Eu, que só queria ganhar dinheiro e viajar. Eu, que nem queria saber de velhinhos, de criancinhas, de tratar hipertensões ou de salvar vidas.

Costumo dizer que entrei no curso apaixonada por viagens e saí apaixonada por pessoas. A vontade de ir para psicologia transformou-se na vontade de ir para psiquiatria. A vontade de viajar, essa ficou para sempre.

Posso não saber tudo da minha área (caramba, possivelmente nem sei um décimo das coisas que saberei daqui a dez ou vinte anos), mas garanto que dou tudo de mim. Que sou preocupada e atenta. Que gosto genuinamente dos meus doentes, mesmo aqueles que me dão porrada (já aconteceu), que me gritam (é a vida quando se trabalha na saúde mental), que não seguem as minhas indicações, que faltam às minhas consultas e por aí fora. E por isso este discurso da vocação parece-me quase uma idiotice. Afinal, o que é isso da vocação para ser médico?

O Pedro também não queria ser médico. Na verdade, queria ser pianista. Mas não era suficientemente bom (acontece), tinha boas notas, não se queria chatear muito e achou que mais facilmente teria uma vida calma e despreocupada em medicina (mais uma vez, uma perspectiva claramente demasiado optimista). Durante anos ouvi o Pedro dizer que não era isto que queria. Hoje o Pedro é um dos melhores médicos que eu conheço. É um oftalmologista do caraças. E vem para casa cheio de dúvidas, repleto de inseguranças sobre se está a fazer as coisas bem, se está a dar o seu melhor ou se o seu melhor chega.

O Bernardo também não queria ser médico. Queria ir para história. Hoje é um endocrinologista bestial.

A Joana quer ser pediatra desde os quatro anos. Pronto, talvez isso seja a tal vocação de que falam. E é muito boa no que faz. Tão boa como eu, o Pedro, o Bernardo e tantos outros amigos e colegas meus que queriam entrar em medicina desde que nasceram ou que decidiram no último segundo porque até nem se imaginavam em nada de especial e tinham médias óptimas.

E sabem que mais? Todos nos transformámos em médicos bons. Não sabemos ser de outra maneira. Só sabemos dar o melhor de nós: desde o secundário que o fazemos. Diria até que sempre o fizemos. Somos trabalhadores. Somos aplicados. Somos obsessivos. Somos até um pouquinho masoquistas.

Tenho amigos que demoraram dois, três, quatro anos a entrar em medicina. Tenho amigos que demoraram dois, três, quatro anos a entrar na especialidade. Todos têm as suas motivações, mas nunca desistiram (lá está, a tal tendência para a obsessão!).

Eu tive a sorte descomunal (porque sim, foi sorte) de entrar no curso que queria à primeira e na especialidade que queria à primeira. Na altura senti que estava a roubar o lugar a alguém que realmente merecesse, mas hoje sei sem qualquer falsa humildade que sou do caraças no que faço. Tal como teria sido do caraças em engenharia química. Porque a vida é assim: vamos escolhendo os nossos caminhos conforme vamos caminhando.

O resto faz parte de ser pessoa. Empatizarmos com o outro. Preocuparmo-nos com o outro. Gostarmos do outro. Ouvirmos o outro. Ajudarmos o outro. Isso não é ter vocação para ser médico, é ter vocação para ser pessoa. E é uma parvoíce achar que aos dezoito anos isso já existe inegavelmente em nós, acabados de sair da adolescência (vá, ainda na adolescência). É uma parvoíce achar que podemos medir ou avaliar isto em entrevistas.

É uma parvoíce achar que o mundo é tão a preto e branco, onde só existem as pessoas com vocação e os marrões mimados. Porque no mundo real é tudo em tons de cinzento. E ainda bem.