24 de junho de 2020

Ajudar.

A minha anorexia começou com uma dieta. Estava com peso a mais (74kg para ser mais concreta),  e decidi perder algum peso para ficar mais gostosona e chegar aos 60kg que tinha quando entrei na faculdade. Três meses depois atingi o meu objectivo. Mas já estava doente.

Só falava em comida. Só pensava em comida. Sabia as calorias todas de tudo o que consigam imaginar, do feijão ao café, da pastilha elástica aos iogurtes. Achei que podia perder mais algum peso, 'ficar com alguma margem', dizia para mim própria. E fiquei. Com quase vinte quilos de margem.

Nunca pedi ajuda, porque não me sentia doente. Era funcional. Tinha namorado, ia às aulas da faculdade, tinha amigos. Na verdade, nunca me tinha sentido tão bem, cheia de energia e de vida. Quando as pessoas à minha volta começaram a preocupar-se, comecei a dizer em voz alta as desculpas que já dizia a mim própria: é só até chegar ao meu peso ideal, só quero ter alguma margem de manobra, não tenho fome, estou cheia, não gosto desta comida, ando a tentar ter uma alimentação mais saudável. Quando se tornou óbvio que isso eram balelas, comecei a mentir descaradamente, a evitar comer à frente de outras pessoas e a esconder a comida.

Nesta altura tinha amigos próximos, a Joana e o Bernardo já eram os meus melhores amigos, já vivia com o Pedro, ia a casa dos meus pais todos os fins-de-semana. E mesmo assim demorei seis meses a ir a uma consulta de psiquiatria. Porque eu não achava que estivesse doente, e à minha volta passou despercebido durante muito tempo o quão doente eu estava.

Não fui a uma consulta por achar que estava doente, fi-lo para calar a minha mãe e o Pedro. Já não os podia ouvir mais os seus nhenhés, que chatos, eu estava bem. Demorei algum tempo a confiar no meu psiquiatra, e até lá fazia exactamente a mesma coisa: mentia, enganava. Quem? Essencialmente a mim própria.

Um dia lembro-me de me sentir particularmente desesperançada, e de ter perguntado ao psiquiatra como viviam as pessoas normais. E ele respondeu-me que um dia, quando eu estivesse curada, não ia saber a quantidade de calorias de uma lata de feijão, porque isso é o que acontece com as pessoas normais.

Não acreditei nele. Naquele momento, para mim, era impossível um futuro onde o peso não fizesse parte das minhas preocupações, onde a comida não fosse o inimigo, onde ia sentir-me confortável com o meu corpo. Achava genuinamente, com todas as minhas forças, que ia ficar doente para sempre, que nunca mais ia conseguir recuperar o peso, que a minha vida ia passar a ser a doença.

Quem se suicida não é cobarde, mas também não é corajoso. Está doente, muito doente. Tal como quem morre com um cancro no pulmão está doente do pulmão, quem morre por suicídio está doente do cérebro. Não tem crítica, não consegue ver outra saída. Percebo a ideia de partilhar recursos, partilhar números, incitar as pessoas a pedirem ajuda, mas a questão é esta: quem está muito doente, muitas vezes não tem energia para o fazer ou crítica para perceber que precisa de fazê-lo.

Que não dependa de quem está doente fazê-lo. Que dependa de quem está à sua volta, de quem se vai apercebendo aos poucos, de quem fica preocupado com uma frase ou um olhar. Chateiem. Chateiem os vossos amigos, chateiem os vossos familiares, obriguem-nos a ir a consultas, vão com eles para se certificarem que eles chegam à porta, certifiquem-se que eles cumprem os tratamentos.

A culpa não é de quem não se trata, mas também não é de quem não percebe que alguém precisa de se tratar. Não interpretem estas palavras dessa forma, esta não é uma culpabilização de quem não consegue fazer o suficiente. A culpa é da doença, é do cérebro, é do que deixou de funcionar bem temporariamente. Falem com quem está à vossa volta, partilhem as vossas experiências, ouçam. Aprendi muito sobre mim nas consultas psicoterapêuticas que tinha com o meu psiquiatra, e hoje em dia já nem sequer me lembro do nome dele. Alegro-me também em dizer-vos que não faço a mais pálida ideia de quantas calorias tem uma lata de feijão. Mas ali, naquele momento, achei que isso nunca iria acontecer. Porque estava doente.

Não sei se teria pedido ajuda sozinha. Provavelmente sim, mas talvez depois. Quem sabe o que teria acontecido.