14 de setembro de 2018

As reflexões que antigamente antecediam receitas (4)

Quando eu tinha uns oito ou nove anos fui operada pela segunda vez ao estrabismo. Podia ter sido um momento assustador: entrei sozinha na sala da cirurgia, sem saber o que ia acontecer, com imenso medo e a perceber que os meus pais estavam super aflitos (porque a minha última cirurgia não tinha corrido bem). Mas foi um dos dias mais felizes da minha vida. Porquê? Porque quando acordei os meus pais ofereceram-me a Barbie tropical e um Ken.

Ora, eu só podia receber uma Barbie ou um Ken no Natal, porque eram caros. E ter os dois, assim de repente, foi uma grande felicidade.

Em Junho deste ano voltei a ser operada, e confesso que já falei desta história tantas vezes a tanta gente que esperava que alguém me oferecesse uma Barbie. Como isso não aconteceu, comprei a minha própria Barbie (porque sou uma strong independent woman). Achei que o Matias também ia achar graça, e tinha razão: desde então o Mati adora a Bábi, pede para tomar banho com ela, leva-a a passear (e mostra-lhe as coisas, dizendo 'olha isto Bábi, olha aquilo Bábi') e até pede para a deixarmos dormir com ele, destronando aquele que era até então o lugar residente do Mickey.

Quando há umas semanas noticiaram que o papa Francisco teria dito algo do género 'pais de crianças que achem que são homossexuais deveriam ir com elas ao psiquiatra', isto foi um tema muito falado no meu grupo de amigos, porque uns são religiosos, outros são homossexuais, outros são ambos, outros não são nenhuma das opções anteriores mas têm opiniões e eu sou psiquiatra de miúdos e tenho alguns miúdos com questões da sexualidade na minha consulta (não apenas, mas também).

E alguém usou a dada altura um argumento do género 'pois, os miúdos hoje em dia estão confusos porque já é tudo misturado, agora os meninos brincam com coisas de meninas e vice-versa, pintam as unhas aos meninos nas brincadeiras, etc etc etc'.



Aquilo deixou-me a pensar. O Matias tem um montão de brinquedos diferentes, das mais variadas cores, e sim, alguns deles são 'de menina' (há uns Legos todos rosa com meninas na caixa, um xilofone rosa com a menina da Patrulha Pata, o conjuntinho do chá, por aí). Um dia destes eu estava a pintar as unhas e ele também quis experimentar, e eu pintei-lhe as unhas (de verde, ficou giro). Também já quis pôr baton. E tudo isto tem um objectivo muito concreto: prepará-lo para a vida.

Brincar prepara-nos para a vida. O Matias brinca com bonecas e cuida delas, porque um dia é esperado que cuide dos amigos, dos irmãos, dos relacionamentos e dos filhos. O Matias brinca com comida, porque um dia é esperado que vá às compras e cozinhe. O Matias dá banho à Barbie, porque um dia é esperado que o dê aos filhos. O Matias arruma a roupa dele no cesto da roupa suja, tira a roupa da máquina, ajuda a estendê-la, põe a louça dele na bancada da cozinha e ajuda-nos a tirar a louça limpa da máquina, porque um dia é esperado que o faça e decidirmos ensinar-lhe agora, para ele se sentir mais crescido e mais competente. O Matias escolhe a roupa que veste e os sapatos que calça, porque um dia é esperado que trate da imagem dele.

Ou seja, hoje em dia educar um rapaz não é em nada diferente de educar uma rapariga, porque socialmente temos papéis iguais e devíamos ser preparados para as mesmas coisas. Não faz sentido ensinar o Matias a brincar aos polícias e não aos professores, a lutar e não a brincar com bonecas, a andar de bicicleta e não a fazer chá para os peluches, porque espera-se dele que faça tudo isso. Que seja livre.

Livre para brincar, livre para ser e, acima de tudo, livre para pensar.

E os miúdos não estão 'confusos porque é tudo misturado'. Na verdade, fico constantemente abismada com a abertura que os miúdos que eu conheço têm para discutir estes temas, muitas vezes com doze ou treze anos. Fico feliz pela forma como a diferença é abraçada.

Agora só falta aos adultos ver isto assim também.