4 de agosto de 2017

Faz birras? Ainda bem!

Como imaginam, as birras são um dos motivos mais frequentes de pedidos de consulta na Psiquiatria da Infância e da Adolescência. Normalmente estão associadas a outras alterações do comportamento, é um facto, mas não deixam de ser algo com que estamos imensamente habituados a lidar.

Confesso que estava curiosa para saber como seria lidar com uma birra de um filho. Afinal, uma coisa é mandar bitaites do outro lado de uma secretária depois de ler uns quantos livros, outra completamente diferente é lidar ao vivo e a cores com um filho que parece precisar de um exorcista.

Nos últimos tempos eu e o Pedro temos conversado muito sobre o tema e aprendido imenso. Já há algumas semanas que queria ter escrito este texto, mas como ultimamente tenho andado cansada tinha algum receio de não conseguir escrever um texto minimamente coerente.



Antes de mais, há algo que frequentemente digo aos pais da minha consulta. Todas as crianças fazem birras. A birra é uma exteriorização da frustração e da agressividade, e serve essencialmente para as crianças aprenderem a reorganizarem-se e a auto-regularem-se. A birra é uma coisa boa. A birra é uma coisa normal. Para mim são as crianças que não fazem birras que são preocupantes, no sentido em que correm o risco de se tornarem adolescentes e adultos passivos ou de não aprenderem a auto-regularem-se na altura certa.

Muitas vezes os pais referem que 'o meu filho não aceita o não' e eu pergunto sempre 'mas quem é que aceita um não?'. Na verdade, mesmo quando somos adultos não gostamos de ser frustrados. Simplesmente não nos atiramos para o chão a gritar porque já temos mecanismos para lidar com isso, enquanto que as crianças pequenas ainda estão a aprender a controlarem-se.

A frustração é desagradável, e qualquer criança reage a isso. A partir do momento em que começam a perceber o poder do não (por volta dos doze meses), há todo um mundo de situações novas geradoras de mais independência que se abrem à frente deles. Agora, eles podem não querer comer. Agora, eles podem não querer lavar os dentes. Agora, eles podem querer não ir para a escola. Eles têm o poder de dizer que não. E perceber isso é um ponto importantíssimo no desenvolvimento de cada criança, que efectivamente deve ter a liberdade de poder dizer que não a algo com o qual não se sinta confortável.

Lá entra o adulto como elemento contentor, e assim começa a birra.

Frequentemente, digo também aos pais da minha consulta para escolherem bem as lutas que querem travar nestas fases de mais birras.

Há algumas semanas eu e o Matias estávamos a ir para o carro. Ele ia ao meu colo, descalço (agora anda sempre descalço, está imenso calor), e começou a fazer birra porque queria ir para o chão. E eu deixei. Não estive ali a atrasar a questão - outra sugestão que faço aos pais da minha consulta é não andarem a dizer que não se depois no fim vão acabar por dizer que sim, se é para deixar que se deixe logo e não porque o miúdo nos venceu pelo cansaço! - e o miúdo foi para o chão da rua descalço.

É claro que odiou e quis voltar imediatamente para o colo. Eu deixei, a birra acabou e o Matias aprendeu que ir para o chão descalço é chato (e eu aprendi que sempre que o Matias vai à rua temos que o calçar).

Por outro lado, quando sua excelência decide que lavar os dentes é uma seca (todos os dias, vá), não há grande opção: lava e pronto, temos pena amigo. Se for preciso fazer contenção física da birra, faz-se. Se for preciso estar a cantar 'as dentolas são nossas amiguinhas porque mastigam as nossas comidinhas', canta-se. Mas não cedemos nisto.

Cedemos em algumas coisas, não cedemos em outras. Se um dia o Matias azeitasse muito com a questão de se vestir de manhã, podem crer que ia de pijama para a escola. Se um dia o Matias azeitasse muito com a questão de colocar o cinto de segurança da cadeirinha, temos muita pena, porque o cinto ia na mesma. E não é uma questão de gritos nem de palmadas (até porque como sabem eu sou absolutamente contra isso), é uma questão de sermos contentores e coerentes. Porque as crianças precisam de coerência. Mais do que de pais permissivos ou autoritários, precisam de pais que sejam sempre permissivos ou sempre autoritários (ou sempre autoritativos), e que não andem a saltitar entre registos educacionais.

Uma das razões mais frequentes das birras do Matias é querer pegar no meu telemóvel. É realmente impressionante como os miúdos parecem nascer pré-programados para isto: em casa raramente mexo no telemóvel e o Mati só vê o telemóvel quando fazemos FaceTime com a minha mãe, a Joana ou o Bernardo, mas mesmo assim o miúdo sente um qualquer fascínio cósmico pelo assunto e anda sempre a tentar caçar o meu telemóvel de cima da mesa. Eu impeço-o e a birra começa.

E eu faço sempre a mesma coisa: sento-me no chão ao lado dele e digo-lhe que a mamã não pode ajudar, que eu sei que a frustração é chata e que ninguém gosta de se sentir frustrado, mas que isto é algo que ele vai ter de apreender a controlar com o tempo e com o crescimento. Normalmente o Pedro fica a olhar para mim com cara de 'endoidou de vez' ou de 'que data de tangas', mas eventualmente o Matias acaba por se tranquilizar. Se a birra é claramente mais provocatória,  então nem me dou ao trabalho: simplesmente deixo-o a reclamar até ele perceber que os papás não vão lá com chantagens.

Além disso, a birra não deixa de ser também uma exteriorização da agressividade. Sinceramente acho que os pais que vejo na consulta têm muito medo dos sentimentos negativos como a tristeza, a zanga e a raiva. A agressividade é, a par da sexualidade, um dos instintos mais básicos do ser humano. Há uns tempos fiz uma formação sobre a importância do brincar, e a dada altura o formador frisava a importância das crianças terem brincadeiras agressivas (brincar às lutas, brincar com espadas, brincar com armas, etc) para expressarem a agressividade de uma forma positiva (através da brincadeira). E isso fez-me todo o sentido. Mas deve também haver compreensão pela exteriorização da agressividade na sua forma negativa. Fazer birras, gritar e agredir podem ser formas menos sintónicas de libertar a agressividade, mas libertam-na. Devem ser contidas, claro, mas também compreendidas e respeitadas. Mais uma vez, se para nós, adultos, é tantas vezes difícil controlarmos a vontade de mandar uma galheta nas trombas de alguém, porque é que para as crianças não o deveria ser?

Ser pai é difícil. Ontem comentava com uma colega de trabalho que às vezes sinto que sou obcecada com o reforço positivo porque festejo tudo aquilo que o miúdo faz. O Matias anda? Bato palmas. O Matias carrega no botão que dá música e começa a dançar? Palmas. O Matias dá-me um beijinho? Palmas. Para mim, 50% do tempo passado na parentalidade envolve bater palmas. Ora a minha colega disse que eu devia get my shit together e que não podemos festejar todas as vitórias dos nossos filhos, sob pena de eles acharem que ficamos satisfeitos com tudo e não se esforçarem para se superarem.

A sério, quem diz que a parentalidade é intuitiva deve estar a gozar.

Numa nota final, outra das coisas que para nós se revelou difícil neste mundo da parentalidade no geral e das birras em particular foi confrontarmo-nos com a diferença de estilo parentais que temos. Quando o Matias faz birra eu ligo o meu modo 'vamos lá falar dos nossos sentimentos'. O Pedro grita. E não há mal nenhum nesse registo. São as estratégias do Pedro, também resultam, e lá porque não são as minhas não quer dizer que sejam piores. São, simplesmente, diferentes. Provavelmente eu serei sempre a 'das conversinhas' e o Pedro será sempre 'o polícia mau', e não há problema nenhum desde que sejamos coerentes e que funcionemos como uma equipa. É claro que eu não gosto que o Pedro grite, mas ele também acha idiota que eu explique ao nosso filho de quinze meses que estar frustrado faz parte da vida, e nenhum de nós invade o espaço educacional do outro (para já, talvez um dia isto se torne mais difícil, mas estaremos por cá para fazer frente a esse desafio).

Por isso, não há propriamente um conjunto de dicas bestiais. Há uns quantos conselhos (coerência, coerência, coerência!), algumas tranquilizações (crianças que fazem birras estão a apreender a auto-controlarem-se) e muuuuita paciência.

E compreensão. Ser criança é indiscutivelmente mais difícil do que ser adulto. Há um mundo de coisas para apreender, para adquirir e para desenvolver, tudo isto enquanto integramos um sem número de informação. E eu digo muito isso ao Matias: os papás não podem ajudá-lo a auto-regular-se, mas vão amá-lo enquanto o faz. Mesmo com birras.