Uma vez, tinha eu uns dez anos, fui com o meu pai às compras. Voltámos para casa com o Tomb Raider 3, um jogo da Lara Croft que custou na altura onze contos.
Acho a grande maioria da malta que me lê consegue lembrar-se do que eram onze contos no fim dos anos 90. Era imenso dinheiro. Eu estava louca de alegria. O meu pai estava super contente. A minha mãe passou-se. Foi quase tão mau como quando o meu pai gastou sete contos a comprar-me umas Adidas (acho que dá para perceber quem era o polícia bom lá de casa).
Este jogo durou anos, mas eu nunca o joguei: ficava sempre sentada ao lado do meu pai a vê-lo jogar e a ajudar. Depois o meu irmão cresceu e eu via-o a jogar também. Depois vim viver com o Pedro e trouxe comigo esta tradição, e durante os primeiros anos do nosso namoro passámos horas muito românticas a jogar Tomb Raider 3.
Este foi o único jogo de computador da minha infância inteira. O meu irmão, dez anos mais novo, já nasceu noutra fase, e já tinha imensos jogos, não só para o computador mas também para a Playstation (que eu nunca tive).
Recebi o meu primeiro telemóvel aos doze anos, quando entrei no sétimo ano. Na altura o telemóvel servia para mandar mensagens às minhas amigas (poucas, porque pagavam-se) e para ter toques porreiros. Era uma idade comum para recebermos o nosso primeiro telemóvel, e creio que quase todos os meus amigos tiveram um nessa idade.
Quer nós queiramos quer não, os nossos filhos vivem numa fase diferente. Eles vivem na altura em que os miúdos de oito anos jogam Fortnite. Eles vivem na altura em que é impensável não terem um tablet ou um telemóvel com jogos. Eles vivem na altura em que as festas são temáticas. E sim, eles vivem na altura em que se celebra o Halloween.
Confesso que tenho pouca paciência para os discursos à Grinch-velho-do-Restelo:
'O Halloween não é uma tradição portuguesa!' - Mas alguma é? O Natal é português? O Carnaval é português? A Páscoa é portuguesa? Vamos só celebrar o 25 de Abril e o 5 de Outubro?
'Os miúdos deviam ir todos fazer o 'Pão por Deus'!' - Era adulta da primeira vez que ouvi falar do Pão por Deus, ao contrário do Halloween, que já conheço desde a infância. Na minha terra ninguém faz o Pão por Deus, não é tradição, ninguém conhece.
'É só uma desculpa para gastar dinheiro!' - E? É assim tão mau os nossos filhos mascararem-se e divertirem-se e receberem doces? Eu cá acho que é divertidíssimo, mas isso sou eu que tenho claramente um parafuso a menos.
'Andam aí todos vestidos de múmias e zombies, não tem graça nenhuma' - Concordo que há disfarces mais giros e engraçados, mas não é tão bom os miúdos poderem fazer de conta que são personagens más e exteriorizarem a agressividade de uma forma saudável, normalizando assim algo que geralmente até os assusta?
Os nossos filhos estão a crescer num mundo fixe. O que nos mostram os estudos é que nunca foi tão seguro ser criança como agora, nunca houve tantas condições a nível de saúde e de educação, nunca houve tantas preocupações com o desenvolvimento saudável, as nossas crianças nunca foram tão informadas a nível ambiental e social e sim, as nossas crianças são felizes. Deixemo-las ser felizes, fazer coisas totós, jogar jogos de computador q.b. e ter tradições estranhas. Para nós são onze contos, mas para elas são memórias incrivelmente felizes.
E por isso sim, os meus filhos vão celebrar o Halloween, o Carnaval e o 5 de Maio mexicano se me (e lhes!) apetecer, vão ter jogos de computador e telemóveis eventualmente, vão ter o que eu lhes conseguir dar. Também vão ter regras, trabalhos de casa e chatices. Vão ser crianças do tempo delas, tal como as outras. E sabem que mais? Ainda bem.