4 de março de 2016

Pregnancy Diary #85

Há uns tempos assisti a uma conferência em que o orador reflectia sobre o facto de as crianças actuais não terem tempo para se aborrecerem. Dizia ele que entre a escola, o estudo, as actividades dos tempos livres, a televisão, o computador e os tablets, os miúdos de hoje não tinham tempo para não fazer nada. E, consequentemente, não conseguiam estimular a sua própria criatividade: afinal, a dúvida surge precisamente do aborrecimento.

Na altura concordei, mas confesso que nunca mais tinha pensado naquilo. Até agora.

Olho à minha volta e vejo os meus amigos assoberbados de trabalho, muitas vezes a ficar no hospital mais de 36h seguidas (porque são obrigados a isso, não porque lhes paguem mais ou porque queiram realmente fazê-lo) e a entrar em pânico com a fase de exames e a discussão de relatórios (durante a especialidade fazemos exames todos os anos).




E depois revejo os meus dias e percebo que aquilo que mais gosto em estar em casa é ter tempo para pensar. Ter tempo para, simplesmente, ser. Acordar depois de ter dormido doze horas e pensar 'hoje não tenho rigorosamente nada escrito na agenda, é um dia completamente em branco que posso preencher com aquilo que eu quiser'.

Normalmente, aquilo que eu quero fazer é aborrecer-me. E é na sequência desse aborrecimento que surge a criatividade.


Vai daí, desde que estou em casa já pintei umas quantas peças de mobília. Já aprendi a fazer tricot. Já reorganizei a biblioteca. Já li mais do que nos últimos anos. Já remodelei a sala. Já aprendi a instalar candeeiros, persianas e chuveiros. Já pensei na crise dos refugiados. Já criei um álbum de fotografias para o bebé, cheio de fotos das nossas pessoas que vivem longe. Já aprendi sobre a história russa. Já me questionei sobre quem seria a mulher do mundo com mais filhos (é uma senhora russa que teve 69 filhos). Já li sobre o Tết e as suas tradições. Já planeei as próximas viagens. Já me actualizei em relação à situação política americana. Já descobri o que era o xadrez japonês (ou Shogi). Já preparei a casa para a chegada do bebé (e até já preparei a mala da maternidade!). Já fiz dezenas de vezes o quiz com todos os países do mundo. Já me questionei se estou na especialidade ou até na profissão certa.

Acima de tudo, já pensei muito na vida.


E descobri que isto assusta muito as pessoas. Ver alguém introspectivo tem o poder de deixar o outro preocupado: afinal, de certeza que alguma coisa não estará bem. Aquela pessoa sempre teve tanta vida, tanto entusiasmo, e agora está ali parada... A pensar?

E vamos arrastando com isto a ideia de que parar é mau. De que pensar é mau. De que pôr as ideias em ordem é mau.


Pois bem, sinceramente nunca estive tão feliz como agora. Nunca me senti tão informada como agora. Nunca me senti tão em paz como agora. Precisamente porque nunca me aborreci tanto como agora. E nunca pensei tanto como agora. E nunca fui tão criativa como agora.

Por isso, não tenham medo de parar para pensar. Porque não estão tristes, não estão a ser inúteis e não estão a desperdiçar o vosso tempo.

Estão, simplesmente, a ser.